domingo, 20 de maio de 2012

Um lageano nos bastidores do séc. XX.

    Uma surpresa. Já havia escutado seu nome, sobrenome principalmente. Sua obra, O continente das Lagens um verdadeiro texto-monstro, uma obra fetiche para historiadores. Estou falando de Licurgo Ramos da Costa, lageano que conheceu pessoalmente Getúlio Vargas, Mussolini, Salazar, Roosevelt, Juscelino, Jorge Luiz Borges, entre outros, quase entrevistou Hitler, trabalhou nas vísceras do Governo Vargas, especificamente no Estado Novo, esteve diante de Frida Khalo, Diego Rivera, chefes de Estado, artistas, governos controversos e passageiros.        
      Conheceu o Rio de Janeiro na sua Belle Époque, conversou com Ruy Barbosa, Pedro Calmon, enfim. Tive essas notícias e fiquei surpreso diante da empreitada desse senhor, que tento ao máximo aqui evitar o julgamento, embora já tenha feito uma apresentação aos moldes de um bajulador, tenho difículdades de me conter diante de alguns valores, digamos, saudosos demais e bem questionáveis. Ainda assim faço força para não misturar alhos com bugalhos, moral com literatura, deixo o encargo para a paróquia.
    Na sequência, reproduzo uma entrevista realizada pelo jornal A Notícia, na figura do jornalista Apolinário Ternes, que foi onde tive gosto de saber mais sobre o escritor, jornalista,  meu conterrâneo, Licurgo. Inauguro assim, uma série, que esporadicamente vou nutrir, a partir de entrevistas, trechos biográficos, textos diversos, de personagens que me chamaram atenção enquanto fujo da vida acadêmica, perseguidora aliás, e mais: principalmente os caminhos que estes trilharam, os livros que leram, que é o que mais me chama atenção, particularmente - sou um invejoso das leituras e bibliotecas alheias.


Licurgo Ramos da Costa, o senhor embaixador

Apolinário Ternes Editor de Grandes Entrevistas
    "Nasci no continente de Lagens, em terras altas..." Com estas palavras, décadas depois de 1904, o embaixador Licurgo descreve o pedaço de chão em que nasceu. Quase uma vida inteira depois, em 1982, escreveria talvez sua principal obra, uma história de Lages, com o título "O continente de Lagens", em 4 volumes.
    Licurgo Ramos da Costa, nasceu em Lages, no dia 4 de outubro de 1904. Filho de fazendeiro Octacílio Costa, hoje nome de município, neto do grande líder Belisário Ramos, fundador da dinastia dos Ramos, cedo veio para Florianópolis, estudar. Depois a capital federal de então, o Rio de Janeiro, em 1921.
    Foi no Rio, aos 17 anos, que Licurgo entrou mesmo para o mundo. Para dele participar, quase como personagem de livro de ficção. E, no entanto, era, foi e continua sendo a sua vida real, agora a caminho dos 93 anos. Jornalista, escreveu e chefiou os melhores jornais da capital do País, nos trepidantes anos 20. Com isto, conheceu os nomes que fizeram boa parte da história do Brasil na primeira meta do século. Amigo pessoal de Getúlio Vargas, trabalhou com ele, numa proximidade só comparável a meia dúzia de personagens do Planalto, dentre as quais, a filha de Vargas, Alzira.

PELO MUNDO
    A partir de 1941, inicia outra trajetória ainda mais fascinante do que a vida ao redor do poder. Tanto dos palácios presidenciais, quanto das redações dos jornais mais importantes do País. Adido Comercial do Brasil no México, depois Lisboa, Milão, Roma, Washington, Nova Iorque, Madri, Buenos Aires, e Montevidéu, quando se aposenta como ministro de primeira classe, em 1973.
     Nestas capitais, poliglota que domina 5 idiomas, o lageano não só conheceu os principais monumentos históricos do Ocidente, incluindo os maiores museus, mas pôde conviver, conversar e privar de amizades com artistas, escritores, políticos e estadistas como Roosevelt e Eisenhower, Salazar e Franco, Picasso e De Chirico, Jorge Luiz Borges e Octávio Paz, Ruy Barbosa e Manoel Bandeira, Ortega Y Gasset e papas como Pio XII, Paulo VI e João Paulo II. Foi amigo pessoal de Portinari e Villa Lobos, de Getúlio e de Juscelino. Enfim, o embaixador Licurgo Costa não conheceu apenas os países de todo o Ocidente, conversou com as maiores personalidades do século 20. Aqui e no exterior.
    Perambulando pelo mundo, Licurgo Costa viveu emoções fortes, vivendo os acontecimentos que mudaram a face da Europa. E do mundo. Com cultura invejável, memória excepcional e plena lucidez, ele aquiesceu em conversar com o jornalista, para mais "uma daquelas entrevistas". Não era. Orientado pelo escritor Iaponan Soares, conseguimos, preliminarmente, toda a consideração do dr. Paschoal Apóstolo Pitsíca, presidente da Academia Catarinense de Letras, amigo pessoal do embaixador, residentes, ambos, no mesmo edifício, no centro de Florianópolis.
    Escoltado e sob as honras do presidente da Academia, que já nos havia colocado à disposição para pesquisas e leituras, todas as sete pastas do escritor Licurgo Costa na Academia, à qual pertence, ocupando a cadeira número 37, e que já presidiu, fomos protocolar e cerimoniosamente recebidos na biblioteca do escritor lageano, no meio de uma ensolarada tarde de janeiro. A conversa deveria ser para as apresentações. De 15 minutos, se estendeu por mais de três horas. Iniciou-se ali uma agradável convivência de semanas, que resultou na mais longa entrevista já publicada por A Notícia em seus 74 anos de existência. Um documento para a história.

LUCIDEZ PLENA
    Licurgo Ramos da Costa, aos 92 anos de idade, mantém saúde quase perfeita. Dirige, ainda, o seu automóvel no reconhecidamente complicado trânsito da Capital de Santa Catarina. Se não tivesse sido embaixador, a diplomacia brasileira teria perdido um raro talento. Ele tem o comportamento afável dos lageanos, ainda que secularmente formal, quase fechado. Nos trata com o reverencial "senhor". É de uma polidez impecável. De gestos e fala suaves, apaziguadores. Cerimonioso, nos concedeu, desde o início, todo o tempo possível. Queria saber das perguntas, "para arrumar a memória, pesquisar datas, conferir nomes". Responderia por escrito, sê possível. E o fêz, com impressionante boa vontade. Todos os arremates, para usar uma expressão do planalto, tudo poderia ser diretamente, em tantas visitas necessárias.
Licurgo Costa é um dos raros catarinenses que tem verbete de seu nome na Enciclopédia Delta Larousse, 1972. É detentor da Carteira Profissional número 1 de Santa Catarina. Membro da Academia e do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Dezenas de condecorações. Citações em livros, no Brasil e no exterior. Tem 18 livros publicados e é um intelectual de brilho, com vastíssima cultura sobre a história do mundo.
    Um catarinense ilustre, um senhor embaixador, casado com a paulista Susy Garcia da Costa, que hoje divide as alegrias da velhice num apartamento emoldurado com obras de arte trazidas das mais diferentes partes do mundo. Tem uma filha, casada com um fazendeiro do Uruguai, que reside em Montevidéu, e que já lhe deu 3 netos e uma bisneta.
    Nas páginas seguintes, o depoimento do embaixador, exclusivo para A Notícia na série Grandes Entrevistas. Confira.

Em Lages, à luz de velas, com leituras da Europa.
Nesta primeira parte, Licurgo Costa conta como foi sua infância. Filho de família importante, numa cidade de 1.500 habitantes, sem nenhuma das invenções do século 20. Sem energia elétrica, caminhando em temperaturas de 4 a 5 graus. A rotina do cotidiano, as leituras do pai, a influência da cultura portuguesa: na raiz do lageano, um homem que vem de Portugal, de séculos e séculos passados...

A FORMAÇÃO
    À sugestão de Apolinário Ternes para que esta entrevista começasse com um breve estudo sobre "minha formação", reagi perguntando: ­ "Mas, será que isso interessa a alguém?"
    Ele aduziu vários argumentos defendendo a idéia e ficou combinado que eu a reexaminaria e se concordasse, selecionaria alguns dados para que, num próximo encontro, falássemos um pouco sobre os meus longínquos tempos de infância, adolescência e estudos.
    Lembrei-me, depois, que eu mesmo, nas muitas vezes em que, por falta de assunto, me ponho a pensar nesta vida que vou levando há mais de 92 anos, me pergunto, um tanto surpreso, como é que sozinho ­ na maior cidade do País ­ o Rio da "Belle Époque" ­ para onde convergiam, dispostos a vencer, a triunfar por qualquer preço, todos os ambiciosos do Brasil, consegui sobreviver e até a alcançar alguma projeção? E chego sempre à conclusão de que devo ter levado comigo alguns fatores decisivos para a luta em que me envolvi. E, ainda mais, aqueles que lá alcançaram a vitória, fosse modesta como a minha ou vistosas, espetaculares como as de uns poucos privilegiados, de certo não lutaram com as mesmas armas. E nesta ordem de idéias tem razão o eminente jornalista, quando sugere começarmos falando sobre uma época de minha vida em que, presumivelmente, me armei de recursos para não ser derrotado. Será então, a da minha infância e adolescência, ou melhor, a do primeiro quartel do século que está terminando.
A Notícia: ­ Como foram os seus anos de infância, em Lages? A vida familiar na fazenda. Rotina daqueles anos, lembranças daqueles tempos.
Licurgo Costa: ­ Parece-me prudente, de início, algumas breves considerações à margem da minha provecta idade.Se adotarmos o critério cronológico de Eric Hobsbawm, tido como o maior historiador vivo, que considera o século 20 encolhido entre o começo da primeira Conflagração Mundial e o término da desagregação do Império Soviético, ou seja entre 1914 e 1991 e, portanto vigorando apenas por 77 anos, eu faço parte de uma parcela modesta da humanidade que colheu suas impressões sobre fatos de que participou, testemunhou ou foi apenas contemporâneo, na vigência de três séculos. Vivi um decênio do século 19, 77 anos do 20 e já estou completando o primeiro quinqüênio do 21. Uma performance singular, sem dúvida.
     A bem dizer, quando nasci, na remota primavera de 1904, houve certo rebuliço na antiga "Villa de Noça Senhora dos Prazeres da Fronteira do Certam das Lagens", que então já havia encurtado o seu longo e gracioso nome para Lages, simplesmente.
    Explica-se a agitação: afinal eu era, pelo lado materno o primeiro neto do coronel Belisário Ramos superintendente municipal ­ como se chamavam os prefeitos da época ­ e, o que não deixava de ser relevante, fazendeiro dos mais abastados da região serrana. E mais, era o primeiro sobrinho-neto do governador Vidal Ramos, que enfrentou seis dias de viagem do Desterro a Lages para me conhecer e se congratular com o irmão pelo acontecimento. Naquele tempo estas deferencias na família tinham grande significação. Mas também pelo lado paterno a situação não era menos brilhante, visto que era filho primogênito do secretário-geral da superintendência e respeitável jornalista, assim como neto do coronel João Costa, deputado estadual em várias legislaturas e então presidente da Câmara Municipal.
    Como disse, Lages do meu tempo de infância e adolescência teria normalmente uns 1.500 habitantes que, nos três meses de inverno, passariam para uns 1.800 com a chegada dos fazendeiros e suas numerosas famílias. Umas dez ruas bem delineadas, três praças com algumas árvores, sem qualquer tipo de calçamento, formavam o quadro urbano. Quatro ou cinco das ruas centrais dispunham de amplas calçadas ou passeios laterais, de lageões grossos de cerca de um metro quadrado e de uma cor rosada. Este tipo de pedra comum naquela área é a origem do nome da cidade.
    Quando chovia forte as ruas se transformavam em rios de lama, o que não tinha maior importância porque, até mais ou menos 1919, por elas trafegavam alguns carros de mola, puxados por cavalos, umas poucas carroças, lentos carros de bois de vendedores de lenha, pequenas tropas de cargueiros, vindos "de baixo" ou seja do litoral, trazendo sal, arroz, farinha de mandioca e de trigo e para lá voltavam carregando suas bruacas com xarque (carne seca) milho, feijão, pinhão e batata paraguaia. Mas o trânsito maior era de cavaleiros, vindos das fazendas, dos sítios, das chácaras, para alguma compra, pagamento de imposto, consulta a advogados ­ nunca vi querelarem tanto como naquele tempo em Lages ­ e sempre havia cavalos encilhados e amarrados nos palanques às portas de armazéns, casas de fazendas armarinhos, farmácias, cartórios e até igrejas. E no verão, naqueles dias de abafante mormaço, quebrando o silêncio das ruas ensolaradas ouvia-se o chiado monótono e distante dos carros de bois, descendo o morro do posto, carregados de lenha. E quando o minuano, caía de repente sobre a cidadesinha levantava uma polvaderara visível a quilômetros de distância.
    De noite um manto de escuridão envolvia a cidade. Não havia eletricidade, as casas eram escassamente clareadas com velas de cebo ou lamparinas de querosene que empestavam o ambiente com seu cheiro forte e sua fumaça irritante. Em toda a área urbana dois ou três botequins conservavam suas portas abertas até as dez da noite, com seus bêbados habituais. De vez em quando algum cachorro latia e ao clarear do dia os galos faziam um alarido tremendo na cidadesinha.
E era com a luz bruxuleante de uma vela que eu estudava ou lia, à noite. É verdade que a gente se deitava por volta das oito horas da noite e logo ao amanhecer, entre 6 e 6 1/2, no verão ou 7 e 7 1/2 no inverno já se pulava da cama. Por volta das 7 horas se tomava o café com mistura ­ o pão d'água ou pão sovado comprado em uma das duas padarias da cidade ­ ou bolinhos de farinha de fubá fritos na hora ­ o horário do almoço variava entre 11 e meio-dia e o jantar, a janta como dizem os lageanos ainda hoje, entre 4 e 5 da tarde.
    Com tal horário não era de admirar que meu pai, às 19 horas já estivesse deitado, e lendo seus jornais e livros à luz de uma vela. Mas a dele era de luxo, "vela de estearina" ou espermacete, mais forte que as feitas em casa e cujo pavio não soltava fumaça.
    A nossa lida de todos os dias era duríssima. Para não entrar em pormenores, direi que fora dos estudos, a partir dos 7 anos trabalhávamos na lavoura, indo ao Potreiro Grande, hoje bairro Frei Rogério, buscar as vacas, sair quase de madrugada, inverno e verão para comprar pão e três vezes por semana ao açougue buscar um quilo e meio de carne, de preferência bem gorda, cortar lenha para o fogão, fazer o fogo de manhã, buscar água na caçamba. A mim que era o mais velho cabia o pior de tudo, que era logo ao levantar-me, ir buscar o pão para o café com leite, da manhã. Lembro-me que no inverno, de chinelinho sem meia, calça de flanela e camisa de baeta grossa eu enfrentava a geada espessa, de mãos no bolso e com uma cesta de fibras de taquara ou gerivá, colorida, enfiada no braço direito. Não sei como agüentava, aquelas caminhadas no amanhecer, às vezes com a temperatura de 4 ou 5 graus abaixo de zero.
    Creio que com tudo me sobravam umas duas horas para participar das travessuras de uma "gang" de guris que atormentava a visinhança de nossa chácara, no começo da rua Correa Pinto e que aos sábados e domingos jogava peladas com bolas feitas de meias velhas enroladas. Felizmente como jogávamos descalços ­ de pé no chão ­ ninguém se queixava de caneladas".



No Rio, nos movimentados anos da década de 1920.
Nesta parte, Licurgo Costa conta como foi sua iniciação no Rio, onde começou a participar dos grandes acontecimentos do País a partir de 1922. Seu ingresso no jornalismo, na política e seu relacionamento com os grandes nomes da primeira República. O início de sua longa convivência com Getúlio Vargas e os acontecimentos que culminaram na Revolução de 1930.
 

Licurgo Costa: ­ Como resolvi fazer exames de segunda época, em março de 1922, não vim a Lages, nas férias. O Rio entrava numa fase de maior animação, com os preparativos para as comemorações do 1º Centenário da Independência, em setembro e outubro. Como vivia com grandes dificuldades com a pequena mesada recebida, resolvi apelar para Edmundo Luz Pinto, pedindo-lhe para me conseguir um emprego, por modesto que fosse. E ele arranjou-me um lugar de repórter no matutino "A Pátria", então propriedade do deputado mineiro Francisco Valladares, o "Chico Labareda", cacique de Juiz de Fora. Veja-se como Edmundo, apesar de muito moço e não tendo ainda entrado na vida política ­ tinha 24 anos ­ já desfrutava, no Rio, de grande projeção e influência.     Lembro-me perfeitamente do meu "vestibular" para ser admitido no grande matutino, fundado havia poucos anos, por João do Rio falecido em 1921. Era uma tarde de 9 de novembro de 1922, véspera do quarto aniversário da assinatura do Armistício que pôs fim à primeira conflagração mundial. José Bezerra de Freitas, secretário da redação, a quem Valadares me apresentara, mandou-me escrever uma nota sobre o grande acontecimento, entregando-me um livrinho em francês, com o registro do fato. Animado, entusiasmado com a conquista que havia feito, numa época em que era muito difícil conseguir colocação na imprensa do Rio, sempre com uma imensa e aguerrida fila de nortistas candidatos a qualquer vaga, não percebi a malícia do secretário, entregando a um foca que há um mês completara 18 anos e que nunca havia trabalhado em jornal, a responsabilidade de escrever sobre uma data de evidente importância histórica. Li e reli o capítulo, ainda por cima sem auxílio de dicionário e depois, com a caneta e pena de molhar no tinteiro, enchi umas dez laudas de papel, de um dos palmos cada e entreguei-as a Bezerra de Freitas que me dispensou recomendando que eu voltasse no dia 5 seguinte às 4 da tarde.
      Na manhã seguinte, muito cedo, comprei a "A Pátria" e logo no meio da primeira página, deparei com o texto que escrevi, em quadro, corpo 10, negrito, ou seja, com o maior destaque. E sem nenhuma correção. Para uma estréia era qualquer coisa de sensacional a minha aprovação naquele vestibular inesperado. E com grau 10 e louvor do agitado diretor Valladares, que me felicitou calorosamente. Apesar de que Bezerra me colocou na seção de telegramas das agências Havas e Americana e eu fiquei cortando-os e colando em tiras de papel e botando títulos. Durante uns seis meses estive relegado à seção telegráfica, a mais tediosa do jornal, embora importante, porque a colônia estrangeira no Rio fosse considerável.
      Aliás, era a maior cidade portuguesa do mundo com seu milhão de lusitanos, enquanto Lisboa tinha só 800.000. De repente, inesperadamente fui passado para a seção política, como repórter parlamentar. Era a mais importante seção do jornal, um verdadeiro abacaxi recusado por todos os redatores e repórteres. A razão era fácil de compreender: sendo o dono do jornal deputado federal e, ainda por cima mineiro, o redator destacado para a Câmara Federal estaria sempre arriscado a cometer, no copioso noticiário cotidiano, redigido sempre às pressas, uma gafe que poderia custar-lhe o cargo. Era necessário, portanto, ser extremamente cauteloso, conhecer muito bem os amigos e os adversários ou desafetos do diretor, ter o maior cuidado com a bancada mineira e, afinal adivinhar as indiossincrasias do dr. Valladares que as tinha aos montões.
AN: ­ Voltemos, porém, ao seu trabalho como cronista parlamentar. Quais eram, então, os nomes de maior projeção da Câmara dos Deputados?
LC: Em seu livro "Eleição e Representação" Gilberto Amado, um dos espíritos mais lúcidos já nascidos no Brasil, escrevendo sobre a representação parlamentar na república velha, afirma que naquele período (1889-1930) "as eleições eram falsas mas a representação verdadeira". Não sei se poderemos classificar este conceito como paradoxal, ou seja que é ou parece contrário à opinião comum. Porque se fizermos uma comparação entre os representantes do povo brasileiro no Palácio Tiradentes, nos dois períodos, talvez a maioria concorde com o julgamento do ensaísta sergipano.
     O nosso parlamento da república velha era uma assembléia do que havia de mais brilhante na cultura e na liderança brasileira. Poder-se-á dizer o mesmo da representação parlamentar pós-30? sem nenhum saudosismo de minha parte, não creio que se possa comparar aquele conjunto de notabilidades escolhidas com extremo cuidado pelos nossos honrados "coronéis" com os representantes que vieram depois. Nos deputados e senadores da primeira República era raro encontrar-se quem não estivesse a altura de exercer a nobre missão de representante do povo.
     Nunca naquelas quatro décadas houve cassação por falta de decoro parlamentar ou comprovada desonestidade como tem ocorrido sobretudo nos últimos 10 anos. Ninguém então usou o recurso de acrescentar a seus nomes apelidos ridículos excêntricos para ser eleito, e assim por diante, mas lembro, para encerrar o destaque, o incrível caso do burrico "Cacareco" que com os 400 mil votos recebidos por pouco não foi eleito governador de São Paulo. Não resisto, porém à tentação de lembrar o caso de d. Erundina em São Paulo. Se ele se chamasse Maria do Carmo nunca seria eleito nem prefeita de São Thomé das Letras, nos cafundós de Minas Gerais. Sinceramente não pretendo por em dúvida seus méritos, sua inteligência, seu espírito público, sua simpatia, sua honradez etc. O que causa admiração é que uma pessoa sem passado político, sem nenhum tiricínio administrativo, paraíbana com relativamente curta residência em São Paulo, sem maiores recursos para sua campanha, amparada apenas por um Partido Político ainda em formação, tenha conseguido eleger-se governadora de uma cidade que pelo seu imenso eleitorado e o mais rico centro cultural do País, é a terceira unidade administrativa brasileira. Ora, Erundina é um nome raro, fácil de gravar, um tanto excêntrico, destes com que o espírito brincalhão dos brasileiros simpatiza e que, portanto, constitui uma prova do que acima afirmo.
     Agora, olhando o Congresso atual o panorama é outro. Há nele vários ou melhor, muitos senadores e deputados de inegável valor, mas predomina a mediocridade. Tinha razão o dr. Ulisses Guimarães, quando chegou ao recinto da Aamara, creio que na inauguração de legislatura de 1987, olhando-o demoradamente, exclamou: "Que pobreza!"
      Pois olhando o recinto do Palácio Tiradentes naquele remoto 1923, quando ali comecei a trabalhar ele teria exclamado: "Que riqueza". Nomes: Afrânio de Mello Franco, João Luís Alves, Afonso Pena Junior, Gilberto Amado, Getúlio Vargas, Costa Rego, Júlio Prestes, Alvaro Batista, Carlos de Campos, Cincinato Braga, Maurício de Lacerda, Arthur Bernardes, Ildefonso Simões Lopes, Pandiaá Calógeras, Francisco Valladares, Viana do Castello, Otávio Mangabeira, João Mangabeira, Lindolfo Collor e até o nosso paraguaio Celso Bayma, então um dos grandes advogados, com banca no Rio. Aí estão vinte nomes, arrolados de memória e que constituem um conjunto de grandes homens, que deixaram nomes na história.



Getúlio Vargas e as revoluções
 
A Notícia:­ Na sua relação de grandes nomes de parlamentares há menção ao do dr. Getúlio Vargas. Foi então na Câmara dos Deputados que o conheceu?
LC: ­ Conheci-o, realmente, na Câmara, em 1923, mas por circunstâncias especiais cheguei a ter com ele uma convivência muito freqüente, fora do Palácio Tiradentes, e até uma certa intimidade. A história é um pouco longa mas vou resumi-la porque tudo o que refere à Revolução Federalista interessa aos estudiosos da vida catarinense.
     Em 14 de novembro de 1894 a Divisão Norte do chamado Exército Republicano (Pica-Paus) sob o comando do general Pinheiro Machado, acampou em Lages, de onde havia partido, apressadamente na manhã do mesmo dia a coluna federalista (Maragatos), sob o comando de Gumercindo Saraiva que, com seus 1.600 homens ali estivera arranchado durante três dias. A Divisão Norte ficou em Lages, refazendo forças, durante quase uma semana. Pinheiro Machado hospedou-se em casa de meu bisavô, Vidal Ramos Senior, onde deu solenes audiências aos líderes locais. Seus oficiais de maior graduação, muitas dezenas, fizeram boas relações na sociedade lageana. Entre eles figurava o coronel Manoel do Nascimento Vargas, pai de Getúlio e que fez boa amizade com meu avô João Costa, então um dos líderes políticos da cidade e muito versado em história, sobretudo a da Guerra do Paraguai, em que seu irmão, Domingos José da Costa teve notável atuação.
      Ora, o coronel Vargas também dela participara e tal circunstância favoreceu o estreitamento das relações entre ambos. Outro pormenor, o coronel chegou a Lages já "desprevenido" como se dizia e até hoje se diz em Lages quando se quer alegar não ter dinheiro, na ocasião. João Costa emprestara-lhe um conto de réis, quantia nada modesta para a época. Logo que a Divisão Norte voltou ao Rio Grande do Sul, uns dois meses depois o coronel mandou, de Porto Alegre, "um próprio", quer dizer um mensageiro especial, trazer o dinheiro a Lages.
    Lembrava-me deste fato como de muitos outros porque desde menino gostava de ouvir meus avós que, participaram de tantos acontecimentos interessantes da história de Lages, recordá-los.Como todo gaúcho o dr. Getúlio gostava destas conversas sobre revoluções, Maragatos, Pica-paus, Pinheiro Machado, Gumercindo Saraiva e, fugindo da chatice do plenário, com seus grandes discursos sem maior interesse freqüentemente me convidava para um cafezinho, no restaurante da Câmara onde ficávamos recordando coisas da história dos nossos Estados.
     Outra circunstância que nos aproximou foi sermos vizinhos. Ele morava com a família na Pensão Wilson, à praia do Flamengo nº 1 e eu, ali perto, no começo da rua Silveira Martins, de sorte que muitas vezes tomávamos o mesmo bonde ("Real Grandeza" ou "Leme") para irmos para o centro, para o Palácio Tiradentes. Aos sábados e domingos, à tardinha ele saía com a família, a caminhar, ao longo da praia do Flamengo e sempre nos encontrávamos e fazíamos juntos o vagaroso "footing", tão agradável porque suavisado pela brisa que vinha do mar.

AN: E dos outros nomes mencionados quais os de maior realce?
LC: ­ Sem sombra de dúvida Gilberto Amado, ainda nos seus trinta e poucos anos e com uma cultura filosófica, literária e histórica notabilíssima, que dava um sabor especialíssimo à sua oratória tornando seus discursos um atrativo que, quando anunciados pela imprensa lotavam as galerias. Não era uma estrela, era uma verdadeira constelação de valores. Apesar de que, como no caso de Ruy Barbosa, a voz não o favoreça, era um tanto estridente. Os outros nomes também indicavam valores fora de série. Maurício de Lacerda, pai de Carlos Lacerda era um orador primoroso e de incrível bravura; Lindolfo Collor tinha posição destacada como orador e chegou a liderar a bancada gaúcha. Especializou-se em temas econômicos, mas era um temperamento impulsivo e tinha freqüentemente graves atritos com os colegas; dos dois Mangabeiras o maior era João mas Otávio, com sua oratória empolada, à moda baiana tinha maior cartaz na imprensa.

AN:­ Entremos no capítulo sempre atual da história do Brasil no século em curso: a Revolução de 30.
LC: ­ Sabemos que havia na República Velha, vigente até 1930, um único partido político, o Partido Republicano (nacional) que acrescentava a esta designação o nome do Estado em que operava. Assim tínhamos o PR Paulista, o famoso PRP, o PR Mineiro, o PR Catarinense e assim por diante. Nesta constelação de sub-partidos dois astros poderosos disputavam o domínio político do País, tratando de atrair para as respectivas órbitas os outros PRs, dos quais apenas o Rio Grande do Sul equidistante de ambos e fora ao tempo de Pinheiro Machado uma força mais atuante que a dos PRP e PRM. Eram dos donos da República, visto que formavam as maiorias do Congresso como bem entendiam, por via da Comissão de Reconhecimento (creio que o nome era este) com a qual na instalação de cada legislatura anulavam cassando os respectivos diplomas, a eleição dos deputados ou senadores indesejáveis.

AN: ­ Foi mais ou menos a época da criação da Agência Nacional?
LC: ­ Não. Em 1934 ou 35 foi criado o Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural, integrado pelas divisões de rádio, cinema e turismo. Curiosamente deixaram de incluir uma Divisão de Imprensa, no caso mais importante que qualquer das outras. Alguém advertiu o presidente Getúlio Vargas para estranho lapso e ele mandou chamar-me ao Catete, convidando-me para organizar a divisão faltante. Em 2 de março de 1936 inauguramos o serviço, começando também a distribuir noticiário para toda a imprensa brasileira, cadastrada com o maior rigor. Entre jornais, revistas, agências de notícias, boletins, rádio-emissoras atingimos a um número impressionante: 959 entidades. O nosso noticiário era variadíssimo, não se limitando apenas a atos oficiais. E tínhamos a preocupação de somente mencionar o nome do presidente quando indispensável. Isto causou excelente impressão, dando aos nossos "assinantes" a certeza de que não se tratava, de um serviço de propaganda. O material era aproveitado até pelos grandes jornais das capitais. Numa segunda fase organizamos um serviço nos mesmos moldes para a imprensa estrangeira, distribuindo por via aérea e rádio-telegráfica um boletim em espanhol, francês e inglês, contendo sobretudo informações de caráter econômico e financeiro sobre o Brasil. 1.313 entidades no mundo todo recebiam os nossos serviços e por via do serviço de recortes assim como através de embaixadas e consulados do Brasil conseguimos avaliar o seu aproveitamento, que ficava ao redor de 40%. No serviço nacional o aproveitamento beirava 80%. Creio que nunca houve no Brasil qualquer coisa, no gênero, que se comparace ao que foi alcançado.
      Criamos também uma distribuição de artigos assinados por grandes nomes de escritores e jornalistas, entre os quais Azevedo Amaral, José Maria Bello, Henrique Pongetti, Rubem Braga, Genolino Amado, Erico Veríssimo, Juracy Camargo, Danton Jobim, Magalhães Junior, Pedro Calmon, entre outros.
      A excelente aceitação do material distribuído levou-me à concretização de uma velha idéia, a da fundação de uma Agência Nacional de Notícias, nos moldes das grandes organizações internacionais, como a Havas, United Press, Associeted Press, Ansa etc. O nome deveria ser Agência Brasileira, mas já estava registrado e ficamos mesmo com o Nacional, criada por portaria do Ministro da Justiça, em 1 de março de 1937. O êxito alcançado pela Agência Nacional foi extraordinário, quer no Brasil quer no exterior. Até nos jornais diários de bordo dos grandes transatlânticos figurava a nossa sigla.



Dinheiro grosso para os jornais
 
 LC: Em 1937 o D.N.P. sofreu uma grande reforma, passando a denominar-se Departamento de Imprensa e Propaganda, o famoso DIP, continuando como diretor-geral o dr. Lourival Fontes, e a Divisão de Imprensa absorvendo a Agência Nacional. Convidado insistentemente para diretor da Divisão de Imprensa recusei-o porque iria envolver-me em censura e como jornalista profissional repugnava exercer aquelas funções. Tive de explicar minhas razões ao presidente que não apenas as aceitou como declarou, na presença de Lourival, que ele, no caso, teria a mesma atitude. E ainda mais, pediu pra que eu indicasse alguém para o cargo. Indiquei o Nóbrega da Cunha, então redator do "Diário de Notícias", jornal de oposição por sugestão do presidente fiquei com a diretoria-administrativa, importante porque, dispunha o DIP de uma considerável verba secreta cujo valor seria muito difícil calcular na moeda atual do Brasil. Talvez uns 30.000 dólares daquele tempo, correspondentes, grosso modo, em uns 500.000 de hoje.
     Esta considerável importância recebida mensalmente era distribuída a títulos de subvenção para os jornais do Rio, alguns de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas e, se não me falha a memória, da Bahia. No Rio a exceção era o "Correio da Manhã" que só aceitava receber pelos anúncios publicados, como os do Banco do Brasil, Caixa Econômica, Instituto do Açúcar, mensagens oficiais etc. O "O Estado de S. Paulo" era ainda mais rigoroso, não aceitava qualquer publicidade de órgão governamental. As subvenções aos jornais iam de 20.000 a 100.000 dólares atuais, esta última para os "Diários Associados".
     Desta verba era eu que tomava conta porque o Lourival Fontes, por indolência ou mesmo por escrúpulo exagerado mas respeitável, não queria nada com ela nem com qualquer coisa em que entrasse dinheiro. Claro que eu o obrigava a tomar conhecimento de tudo e fazia-o assinar todos os recibos, como posso comprovar com as centenas deles que ainda conservo, passados quase sessenta anos. Conservo-os porque a verba era secreta e embora nunca neste longo tempo, ninguém ousasse colocar qualquer dúvida sobre sua aplicação, eu sempre achei melhor guardar as provas da sua distribuição.
    Tínhamos também a colaboração paga, de muitos escritores, sem distinção de cor partidária ou ideológica. Entre outros nomes ilustres e acima de qualquer suspeita estava Graciliano Ramos.



Na Itália, conversando com Mussolini, em 1938
O lageano conta suas primeiras viagens ao exterior. Sua participação no governo de Getúlio, sua entrevista com Mussolini, o ditador da Itália e sua participação, como integrante da delegação brasileira, em conferências comerciais em Buenos Aires e Santiago do Chile
 

AN: Em 1938 o sr. esteve na Itália. Que impressões lhe ficaram do fascismo e de Mussolini? LC: Realmente em fins de 1938 cinco jornalistas brasileiros, entre os quais Agripino Grieco e Hanrique Pongetti, fomos convidados pelo governo italiano a ir conhecer um velho país, "renovado pelo fascismo". Perguntei ao adido cultural da embaixada, portador do convite se ele importava, na volta da viagem, na obrigação de escrever favoravelmente sobre o que havíamos visto. Pelo contrário, o governo italiano queria que fôssemos absolutamente sinceros, nas impressões com que apreciássemos a visita.
    A imprensa italiana, obediente à batuta do Ministério da Propaganda e no velho hábito peninsular de gastar superlativos, deu o maior relevo à visita dos "eminestíssimos jornalistas brasileiros" que iam conhecer as grandes realizações de Mussolini, na renovação do país. Impingiram-nos uma agenda apertadíssima de visitas e homenagens sem sequer uma hora livre. Naquelas três semanas em que percorremos todas as grandes cidades, ­ obras do governo, até pontes secundárias, escolas profissionais, hospitais, duas cidades fundadas pelo partido nas terras recuperadas dos pântanos mefíticos e milenários do agro-pontino, estradas asfaltadas na ilha de Capri, passarelas sobre as crateras do Vesúvio, novas escavações em Pompéia e Herculanum e naturalmente magníficas instalações do partido e, como não poderiam deixar de ser, banquetes diários com autoridades dos locais visitados ­ naquelas três semanas saíamos do hotel por volta das oito da manhã e voltávamos lá pelas 10 ou 11 da noite extenuados, e aspirando apenas a dormir. De início visitamos em Roma o Conde Ciano, ministro das Relações Exteriores e genro do "Duce", depois Alfieri, da Propaganda e finalmente Mussolini em seu imenso despacho no Palácio Venetia, com uma mesa lá no fundo, a vinte metros da porta de entrada e apenas com uma cadeira em que Mussolini sentava. Ao nos ver entrar levantou-se e nos esperou em pé e foi assim, frente à sua mesa que conversamos durante quase uma hora, entreguei-lhe cinco volumes dos discursos de Getúlio Vargas, sob o título de "Uma nova política para o Brasil", com uma dedicatória de duas linhas: "Ao senhor Benito Mussolini, com as cordiais saudações de Getúlio Vargas", ficou evidente que o "Duce" não gostou da secura getuliana. Homem de viva e extraordinária inteligência falou-nos sobre como encontrou a Itália ao assumir a chefia do seu governo, em 1922, devastada, saqueada pelos políticos, sem leis e sem administração, falida e à beira de ser fragmentada em republiquetas. Quando assumiu o governo, embora amparado por um partido jovem e coeso, ao tomar conhecimento da situação real do país, quase desanimou. Levou muitos anos para mudar a mentalidade dos italianos, entorpecida por décadas de desgoverno e de corrupção. Foi quando afirmou em discurso que "A Itália não é difícil de governar. É inútil" (de governar).
      Depois falou sobre o Brasil, "uma potência econômica e política emergente", que não tardaria muito se bem governada, a figurar entre os líderes do mundo. Procurava, naturalmente, sensibilizar-nos e proporcionar material para nossas futuras reportagens. Deixamos o seu gabinete com uma impressão de que ouvíramos um homem de Estado, amadurecido, natural, de viva inteligência.
     No dia seguinte havia uma comemoração importante, a do vigésimo aniversário da vitória italiana na conflagração de 1914. Defronte do Palácio Venetia, sob a sacada enorme do gabinete de trabalho de Mussolini uma multidão de dezenas de milhares de camisas pretas esperavam sua aparição para o discurso de praxe. Quando ele surgiu sozinho naquele palco a massa ululante o recebeu aos gritos de "Duce", "Duce", "Duce" e ele caminhando de um lado para outro da grande sacada, acenava com o gesto oficial do fascismo, estendendo o braço direito para frente. E afinal depois de uns cinco minutos naquela exibição começou a falar. Grande orador, de frases curtas e empolgantes eletrizou a multidão durante uns quarenta minutos. O meu anti-fascismo de direita e de esquerda, nunca me levará ao desprimor de dizer que Mussolini, rostky, Lênine, Mao Tsé-Tung Salazar e mesmo Franco eram uns pobres diabos destituídos de inteligência. Pelo contrário, foram homens inteligentíssimos, apenas com uma visão equivocada em relação a minha maneira de olhar o mundo.
     Terminada a visita oficial eu e o Pongetti resolvemos ficar mais um mês na Itália para visitar museus, algumas velhas cidades e até para provar um dos mais famosos vinhos, que nem isto pudemos fazer, no atropelo do programa estabelecido. Alguns dias depois a embaixada alemã em Roma transmitiu-me convite para visitar Adolfo Hitler, em seu famoso refúgio de Berchtesgaden, nos Alpes Bávaros. No dia aprazado fui procurado de manhã por um secretário da embaixada alemã, para comunicar-me que o esperava-me no aeroporto de Ciampino, o avião particular do Führer para levar-me. Não pude viajar porque na véspera caíra com uma tremenda gripe e apesar da penicilina ainda ardia em febre. Lamentavelmente perdi uma viagem que me daria material para uma reportagem excepcional.
Mussolini, no governo desde 1922 era assunto esgotado, mas o famigerado líder alemão, empossado havia sete anos, ainda em plena ascenção e, por cima, no seu refúgio alpino, também novidade, era um fecho insuperável para a minha viagem.
     No mês que passamos, sem agenda oficial, fomos discretamente vigiados pela polícia fascista e quando voltei ao Brasil, na série de artigos escritos sobre a viagem mencionei o caso, causando profundo desgosto à embaixada italiana.



Buenos Aires e Santiago
 
AN: ­ Há outras viagens suas ao exterior, não?
LC: ­ Realmente, há ainda, na minha passagem pelo Departamento de Propaganda suas viagens que tiveram muita influência em minha vida. Em 1936 fui nomeado seu representante na delegação do Brasil à Conferência da Paz do Chaco, a realizar-se em Buenos Aires, onde ficamos quase dois meses. A capital argentina era, como ainda é, uma belíssima cidade, em que a gente encontrava, como disse Murilo Mendes a "atmosfera dos países distantes" sentida ou pressentida, nas leituras, nas gravuras, no cinema. Uma imensa e rica capital cosmopolita, muito diferente, em tudo, das nossas metrópoles Rio e São Paulo, que diante dela apareciam extremamente provincianas.
      Na delegação do Brasil, chefiada pelo Chanceler José Carlos de Macedo Soares tive diária convivência com ele e com Oswaldo Aranha, então embaixador em Washington, Rosalina Coelho Lisboa, Edmundo Luz Pinto, Francisco de Paula Rodrigues Alves, nossa embaixada em Buenos Aires, todos delegados e ainda com numerosos ministros, conselheiros, secretários e adidos. Todos os países latino-americanos estavam representados por nomes exponenciais de políticos e diplomatas.


No México, em Lisboa,
Madri, Nova Iorque e Montevidéu
 
Nesta parte, Licurgo Costa narra o início de sua carreira diplomática, como Adido Comercial no México. O seu encanto com os mexicanos e sua convivência com os mais ilustres intelectuais e artistas dos anos 40, como Reyes, Rivera, Fryda Kahlo e Siqueiros... Fala, ainda, sobre os Estados Unidos e sobre a Espanha. Conta também sua presença na embaixada do Brasil em Buenos Aires, onde viveu momentos interessantes, pré-revolução de 1964, com Tancredo Neves e Jango Goulart.

AN: ­ E quando entrou para o Serviço Exterior?
LC:Exonerando-me do cargo em comissão, de diretor-administrativo do DIP e do efetivo, de secretário do Museu Imperial, de Petrópolis, aproveitei a primeira oportunidade para ser nomeado Adido Comercial do Brasil junto à embaixada no México e diretor do Escritório Comercial a ser ali instalado. Mas, a vida é cheia de imprevistos e uns oito dias antes de embarcar fui surpreendido com a notícia de que, independente de convite, estaria prestes a ser nomeado diretor-geral do DIP, em substituição ao Lourival Fontes, afastado por pressão dos militares. Tive de mobilizar amigos que eram também do dr. Getúlio (Valentim Bouças, Luiz Simões Lopes e até a filha Alzira) para livrar-me da prebenda. Os que me ajudaram não compreendiam como eu recusava um cargo talvez superior a de ministro de Estado, para ser apenas Adido Comercial no México.
     Cheguei à capital mexicana depois de agitada viagem aérea via Pacífico e rapidamente me adaptei aos 2.600 metros de altitude. Aliás, naquele tempo ninguém se preocupava com problemas de pressão arterial.
Instalei o escritório no começo do Paseo de La Reforma, a principal avenida mexicana ­ no nº 12 ­ vizinho do "Caballiito", ponto de referência tradicional da cidade. E sendo o primeiro inquilino de todo um andar de um grande edifício consegui do seu proprietário, Dom Desidério Garza, que lhe desse o nome de Brasil, que ainda hoje ostenta.
     Levei credenciais de representante de "A Noite" do Rio e apresentação da UTLJ para o poderoso secretário da Central Geral de Trabalhadores ­ a CGT ­ Dom Vicente Lombardo Toledano, que depois do presidente da república, Dom Manoel Avila Camacho, era quem mais mandava no país. E uma das minhas primeiras providências, ao chegar, foi visitar Dom Alfonso Reyes, o mais famoso poeta e escritor mexicano de então e ex-embaixador no Brasil. Onde o conheci e entrevistei. Com estes poderosos elementos em seis meses eu conquistei situação privilegiada na sociedade, na administração e nos meios culturais da cidade.
       Mas foi sobretudo Alfonso Reyes, um nostálgico do Brasil e ainda falando razoavelmente nosso idioma quem me abriu todas as portas, a começar pela do corpo diplomático. Por sua indicação, Obregon Santacilia, presidente do Pen Clube Internacional do México patrocinou minha eleição para a entidade e me levou a freqüentar o "Salão Literário" da sra. Labastida, onde fiz três conferências sobre o Brasil. Ali conheci os três grandes mestres da pintura mexicana, renovadores do muralismo internacional, Diego Rivera, David Alfonsos Siqueiros e até o arredio e desconfiado José Clemente Orosco. Na imprensa conquistei a amizade de Dom Rafale Heliodoro Valle, o famoso licenciado Vidriera, colunista diário do "Excelsior", o maior diário mexicano, onde meu nome era citado freqüentemente, precedido de adjetivos em geral demasiado generosos. Frida Kahlo, mulher ­ a 7ª e última ­ Diego Rivera, também pintora de renome era freqüentadora de minha aprazível chácara de San Angel, onde nos fins de semana eu mantinha o que os americanos chamam de "open house" e recebia numerosos artistas e escritores e jornalistas para jantar e que ficavam até alta madrugada. Aliás, Diego tinha o atelier a duas quadras da minha casa e costumava a aparecer, sem avisar, para almoçar.
     Não caberia nesta conversa referências a todos os grandes nomes mexicanos com quem fiz amizade, a começar pelo então jovem Octavio Paz, há poucos anos distingüido com o Prêmio Nobel de Literatura, e que foram tantos que até hoje, quando, por descuido me deixo envolver por alguma onda de saudade de muitas fases de minha vida, fico, realmente admirado do quanto me foi dado realizar naquele primeiro posto que ocupei.

AN: ­ Tendo vivido no México por alguns anos e se integrado tão bem em sua sociedade, que impressões lhe ficaram do seu povo e do país em geral?
LC: O México é o único país das três Américas que tem, realmente, uma identidade definida. Tenho o maior respeito pelos adjetivos e, portanto, muito cuidado em empregá-los, mas no caso do México não me arreceio de afirmar que se trata de um dos países mais fascinantes do mundo. Mas para compreendê-lo, diz Érico Veríssimo na estória de sua viagem àquelas terras, "uma vida só não basta". E tem carradas de razão o grande escritor.



Portugal e Itália, com Salazar e Franco
 
AN: ­ E do México para onde foi transferido?
LC: ­ Recebi mais um privilégio do meu destino: fui removido para Lisboa. Ao desembarcar no cais do Tejo tive a curiosa sensação de um regresso e depois na cidade tudo me era ou parecia ser familiar. A leitura da obra do Eça, de Camilo, de Ramalho, durante anos, de "O Século" o maior jornal português, que meu pai assinava, seria a responsável pela informação da teoria platônica, de que nós nunca conhecemos e sim reconhecemos. No correr dos meses, ao visitar as províncias, a sensação era a mesma. 
      Na verdade, viver em Portugal, uma nesga de terra que, segundo os poetas, Deus teria pintado num momento de incontida inspiração, foi, para mim como reler os autores citados. Mas a realidade supera-lhes a capacidade de cantar as belezas, a doçura e até o aroma daquelas terras, onde as aldeias e as quintas de casas floridas de rosas, cravos gerânios, margaridas, violetas e petúnias, em meio às latadas de videiras, compunham um imenso jardim. E em todas as suas cidades, vilas e aldeias, as ruas e as casas têm o encanto das coisas embebidas pelo tempo. De Sintra, pequena cidade de veraneio dizia Eça que não há um recanto que não seja um poema. Mas, a gente percorre o país de norte a sul, desce do Minho ao Algarve, passa por Guimarães, onde o país nasceu, Póvoa do Varzim, Coimbra dos estudantes e do Mondego, Nazaré dos Pescadores e de dom Fuas Roupinho, atravessa Lisboa, Portimão e entre cerejeiras chega ao Cabo de São Vicente, onde o infante Dom Henrique, o navegador, na expressão eloqüente de Edmundo da Luz Pinto, discursando no Quarto Centenário das Descobertas, preparou Portugal para "as suas cavalarias oceânicas que deram ao mundo outros mundos" e todos os recantos que vemos são poemas que ficam para sempre aumentando o nosso acervo de saudades. E também integram as paisagens o mabrego de trajes rústicos, os estudantes, os alfacinhas do Chiado e os fadistas da Alfama Lisboetas, os vinhateiros e, sobretudo, a mulher portuguesa desde as varinas esbeltas e ondulantes até a última representante da extinta nobreza real que mesmo quando envelhece guarda o porte altivo de outrora.



Salazar, de voz suave e professoral
 

AN: ­ E o dr. Salazar, chegou a conhecê-lo pessoalmente?
LC: ­ Uma figura fora de série, com todas as justas discordâncias que poderemos ter de sua atuação política. Professor catedrático da Universidade de Coimbra, antes de completar 30 anos de idade, foi um caso único na vida da velhíssima instituição, fundada em 1290, portanto 210 anos antes da descoberta do Brasil. Salazar saneou as finanças portuguesas e, com o seu Estado Novo, de estrutura inegavelmente fascista, pôs ordem num país convulsionado por agitadores profissionais. Conheci-o razoavelmente em várias oportunidades em que acompanhei personalidades brasileiras ligadas ao setor econômico, ao seu gabinete de trabalho. Era um homem de maneiras suaves, voz pausada, professoral, sumamente atencioso e de postura quase humilde, traço de personalidade que encontrei também no dr. Getúlio no general Francisco Franco e em outros chefes de Estado.

AN: ­ E suas pesquisas em Portugal?
LC:­ Portugal é uma mina inesgotável para pesquisas sobre nossa história. Curiosamente, porém, a maioria serão totalidade dos nossos historiadores que vão garimpar por lá só ocupam da Torre do Tombo e sequer tomam conhecimento de cinco outros, também importantíssimos: o dos feitos findos, o histórico militar, o das identificações, o da Marinha e Ultramar e o municipal, isto em Lisboa porque no resto do país haverá dezenas deles que oferecem enorme importância, incluindo em tal lista arquivo e bibliotecas públicas e particulares, conservadas nas velhas morgadias. Mas, é claro, para tanta coisa só vivendo uma vida e longa por ali. Demais a Torre do Tombo com seus sete ou oito quilômetros de estantes hipnotiza qualquer pesquisador. Para mim me foi de grande utilidade a pesquisa nos arquivos da Casa Matheus que foi em meados de setecentos propriedade de Dom Luiz Antonio Botelho e Mourão, Morgado de Matheus e governador geral de São Paulo, que em 1766 determinou a Correia Pinto que fosse fundar a Vila das Lagens. A parte mais importante dos seus arquivos, uns 300 volumosos maços foi comprada pelo governo brasileiro e está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Do trabalho realizado em Portugal tive excelente dividendo que me permitiu escrever os quatro volumes de "O Continente das Lagens", a maior história até hoje publicada sobre um município brasileiro, editada em 1982 e com sua tiragem de 3.000 exemplares esgotada em poucos meses.

AN: ­ Falemos um pouco sobre os velhos palácios e monumentos de Portugal.
LC: É, sem dúvida, uma parte sumamente interessante das impressões que se colhe em Portugal. Porém, se a formos considerar pelo critério de antigüidade então é assunto vastíssimo que começa no templo romano de Évora, entre os anos 10 e 200 da era cristã para terminar na ponte monumental sobre o Tejo, construída, creio, há uns 40 anos. Fiquemos, então, em quatro dos monumentos que poderemos considerar emblemáticos de Portugal: a Torre de Belém, construída de 1515 a 1521, a mais fina jóia da arte Manuelina; o Mosteiro dos Jerônimos, a praia do Restello, de onde partiram os navegadores, construídos entre 1500 e 1572, portanto também da fase Manuelina; o Palácio de Mafra, emulo do Escorial de Fileipe II da Espanha e levantado entre 1717 e 1730 e, finalmente, a Basílica da Estrela ­ 1779 a 1790 ­ Os dois primeiros, seguramente os mais belos de Portugal ou melhor, da Península Ibérica, nasceram na fase solar da saga heróica lusitana e os outros serão os mais representativos do período em que Lisboa recebia mensalmente carregamentos de ouro e diamantes do Brasil. Considerando o volume de tais remessas, o que ficou em Portugal foi uma parte mínima.
       A outra parte foi esbanjada pela Europa, na compra de prestígios efêmeros, com embaixadas de ouro e por vias de outras bobices e constituiu a alavanca que construiu centenas de castelos, palácios, quintas e monumentos que há dois séculos o mundo inteiro vem pagando entrada para se embasbacar frente às riquezas ali esbanjadas. E são estes monumentos, que o tempo em vez de desmerecer valoriza, que sustentam, pelos milhões de turistas, vários países europeus. Fomos espoliados de uma riqueza imensa em benefício da Europa que ultimamente deu para nos fazer acerbas críticas sob a alegação de que ainda não resolvemos o problema da miséria, da fome, dos sem tetos, etc.
      Pois se não nos houvessem espoliado a situação seria outra. A propósito, do mundo que conheço ­ o Ocidente ­ não vejo ninguém com moral suficiente para criticar o Brasil porque não há país na Europa e na América do Norte que não apresente problemas agudos semelhantes aos nossos: sem-tetos, mendigos, pivetes de rua, corrupção, prisões superlotadas e por aí. E quando verifico a freqüência e a estranha veemência com que as entidades e imprensa estrangeira nos atacam, deixando deliberadamente esquecidas a Ásia, a África e a Oceania, onde os problemas são mais graves que os nossos, fico a pensar que por trás disto tudo está havendo uma preparação para qualquer coisa grave contra o Brasil.



Nos Estados Unidos
 
     Nos Estados Unidos servi sob as ordens de notáveis embaixadores, pois o Itamaraty, sabiamente, só manda para lá personalidades de altíssimo gabarito, como João Carlos Muniz, de quem tenho carta expontânea e honrosíssima sobre meu trabalho à frente do setor comercial da embaixada. Outro grande embaixador foi Walter Moreira Salles.
     Assisti a campanha eleitoral para a presidência da república, de que participaram Eisenhower e Steevens, o primeiro o general vitorioso da segunda Conflagração Mundial e o outro notável intelectual, de fascinante personalidade. Da janela do meu escritório para a Quinta Avenida assisti o desfile de milhares de ex-combatentes no lançamento da candidatura do general, presente no desfile, à presidência da república pelo Partido Republicano, sendo o seu adversário do P. Democrata. Ike, apelido do general famoso tinha, de acordo com ideologia política norte-americana todas as possibilidades de vencer porque um bom presidente dos Estados Unidos não deve ter lido senão um único livro, a Bíblia, e Ike parece que nem mesmo ela havia lido, enquanto Steevens lera centenas, senão milhares de livros.
Assisti na Casa Branca, com a família, a primeira recepção dada por Eisenhower, como presidente dos Estados Unidos.
     Depois de mais de três anos em Nova York, trabalhando de 8 às 20 horas diariamente, estava extenuado e fui removido, já como ministro, para a embaixada em Madri.
     Voltei, em 1954 à velha Europa. Minha especial predileção. Espanha era um reino sob a duríssima regência de Francisco Franco, "generalíssimo de Los Exercitos". Madri dos toureiros famosos, das bailarinas de vistosos trajes, dos "bailaores rabicoos", do canto "hondo" e das saetas, das procissões soleníssimas, de 15 teatros funcionando, de milhões de turistas congestionando a Gran Via, era, tanto quanto a Paris de Hemingway "uma festa". Passeando à sombra das grandes árvores seculares de "La Castellna", no frescor daquela que vinha da serra de Guadarrama, numa paz absoluta, lembrava-me sempre do Paulo Bittencourt, diretor do feroz matutino carioca "Correio da Manhã", flagelo de todos os fascistas, quando uma tarde, em visita ao Parque Eduardo VII, em Lisboa, parou, de repente e virando-se para mim, comentou: estes regimes fascistas são perversos, abomináveis para os nacionais, mas para os estrangeiros são deliciosos. Veja que paz, que sossego, que suavidade a gente desfruta por aqui".
     Quanta coisa me vem à lembrança, dos meus anos madrilenhos! A cidade não é linda como Barcelona, Sevilha ou Granada mas é alegre, viva, colorida e a mais autenticamente espanhola. Em Barcelona, na sede monumental do "Consulado do Mar" (século 12) participei do mais belo festival dançante da minha vida; Sevilha tem aquela catedral do século 15, que os andaluzes enquanto trabalhavam na sua construção diziam: "vamos levantar uma catedral que o vindouros quando "La mirem, digan: Pero, estaban locos"; depois Granada, com os versos tão tristes do poeta cego, no pórtico da cidade.




Montevidéu ­ 1959
 
LC: Em fins de 1959 fui transferido para Montevidéu, já promovido a ministro da 1ª Classe. Montevidéu é uma capital de intensa vida cultural e de clima agradável. Mas é, sem dúvida, politicamente, um posto trabalhoso, sobretudo porque é a área preferida pelos brasileiros para se refugiarem quando a situação se agrava entre nós. Quando da renúncia de Jânio Quadros e Jango Goulart vindo da China, passou alguns dias em Montevidéu, negociando a posse como seu substituto tivemos um enorme trabalho. Coube-me receber no aeroporto Tancredo Neves, enviado das forças políticas brasileiras em avião da FAB, para negociar a volta do vice-presidente a Brasília. Antes de nos dirigir-mos à embaixada, Jango estava hospedado, Tancredo pediu-me para dar umas voltas pela cidade, a fim de conversarmos sobre o estado de espírito de Jango, suas conversas na intimidade. Expliquei-lhe claramente a situação que poderia ser resumida, afinal, em poucas palavras: Jango mostrava evidente receio de ser feito prisioneiro pelo Exército que segundo informações recebidas de Brizola, governador do Rio Grande do Sul não o aceitavam na presidência da República. Depois de bem informado Tancredo pediu para irmos para a embaixada, onde trancou-se com Jango no dormitório do embaixador o único lugar não ocupado por jornalistas, políticos e amigos. Por voltas das 16 horas levei Tancredo e seu companheiro de viagem, ao aeroporto, de regresso a Brasília. Disse-me que estava tudo acertado, que Jango concordara com a instalação do parlamentarismo no Brasil e que voltaria, provavelmente no dia seguinte para Brasília. Horas depois o vice-presidente conversou por telefone com o cunhado, em Porto Alegre e não saiu muito tranqüilo com as informações obtidas. Contudo, no dia seguinte, às 20 horas, já noite, portanto, em avião especial da Varig, com janelas recobertas com pano preto e sem qualquer luz visível, partiu para Porto Alegre, tomando rumo da Santana do Livramento de onde flexionou para Porto Alegre. Ele tinha receio de aparelhos do porta-aviões Minas Gerais, estacionado no mar, mas enfrente a Porto Alegre, interceptasse seu avião ou mesmo o derrubasse. Na ida para o aeroporto, no carro da embaixada viajávamos além dele, o embaixador Sarmanho, eu e seu amigo particular José Mintegui, aliás meu funcionário. Por duas vezes, como a pensar ele nos perguntou: não estarei fazendo uma burrada?
      Pouco mais de um ano depois de sua posse voltou a Montevidéu, em visita oficial, como presidente de República, para, como declarou, agradecer a hospedagem recebida em situação difícil.



As leituras de sempre
 
AN ­ E de suas predileções literárias o que nos conta?
LC ­ Na adolescência e na mocidade lia de tudo. Simplesmente gostava de ler e só em determinado período me deu uma curiosa predileção pela psicologia que passou depressa. Com o tempo fui restringindo minhas predileções, ficando com os maiores nomes, com os clássicos das várias escolas. E como lia fluentemente em quatro idiomas, além do português, tomei contato com o que há de mais importante na literatura universal, desde os ultraclássicos gregos até os atuais de maior renome.
    Para mim Montaigne afirmou uma grande verdade quando disse que "a leitura é uma forma de felicidade". No que foi ligeiramente plagiado por Jorge Luis Borges, quando afirma que "a literatura é uma forma de alegria". Emerson ampliou o conceito referindo-se à "biblioteca como um gabinete mágico onde estão encantados os melhores espíritos da humanidade que esperam nossas palavras para saírem da mudez". Mas os três grandes mestres aconselham a "só lermos o que nos agrada". Por estas e outras fui amadurecendo e restringindo as preferências. Na ficção o que me agrada é o regionalismo sul-brasileiro, talvez porque nele, pelos temas e linguajar retorne um pouco à infância e adolescência. Na prosa, pela ordem das preferências o que leio são memórias, biografias, história e sociologia. Na poesia só não gosto da prosa picada que nos querem impingir como versos.
     Ler para mim é como ouvir música, me tira das poluições do cotidiano para uma região ideal de paz e puro enlevo. Por isso mesmo tenho o maior cuidado na compra de livros e sempre me vem a memória o comentário de João de Barros, o cronista maior do século 16 em Portugal, que afirmava que quase tudo o que se publicava então só servia para "encher a cabeça dos leitores de lixo". E naquele tempo talvez só eram editados uns vinte livros por ano. Imaginem o que ele não diria se vivesse agora... Mas, voltando às minhas predileções, tenho alguns autores canonizados que nunca deixo de reler, começando na prosa, por Eça e chegando agora a Guimarães Rosa, Grieco, Mário de Andrade, Jorge Luiz Borges, Otavio Paz, Italo Calvino e Eric Hobsbawn. Na poesia tenho vários santos: Camões, Cruz e Sousa, Jorge de Lima, Bandeira, Aureliano e Figueiredo Pinto e Mario Quintana.


Os nomes do século
 
AN: Gostaria de ouvir ainda seus comentários sobre personalidades que conheceu e com as quais conviveu.

LC: Uma vida longa e de atuação em vários setores sociais em constante ebulição, mesmo quando desiluminada como a minha, mas que teve o prazer de cultivar amizades, o que no dizer de Manoel Bandeira "é uma das belas-artes", ao atingir a paz e as sombras do crepúsculo, olhando para o caminho percorrido vê às margens dele uma legião de amigos e, não raro, como a mim me acontece, se assombra, se surpreende de haver conseguido tecer tantas afeições. E elas constituem, talvez, o privilégio maior de uma dilatada existência que sempre evitou desperdiçar seu tempo, o único mérito de que me arrogo.
     Mas, o privilégio não está somente em conhecer e ter amizades com personalidades marcantes do tempo em que vivemos. Ser contemporâneo dos vultos eminentes, viver enquanto também eles viviam já é um favor imenso concedido pelo nosso destino.
     Não conheci pessoalmente, mas considero uma honra ser habitante do nosso mundo quando por aqui ainda passavam ­ e eu já havia nascido ­ Einstein, Machado de Assis, Olavo Bilac, Santos Dumont, Barão do Rio Branco, Sabin, Marconi, Bernard Shaw, Anatole France, Mario de Andrade, Olavo Bilac, Trostky, Ghandi.
     E muitos outros faróis da humanidade nesta citação de memória seguramente deixei de referir.
Dos grandes vultos com quem convivi ou ainda convivo e dos que apenas conheci de vista poderia listar, também sem ordem de merecimentos muitos nomes. A começar pelo de Getúlio Vargas, o maior brasileiro de todos os tempos como acima referido; S.S. Santidades Pio XII, Paulo VI e João Paulo II, Wiston Churchill, De Gaulle, Gregório Marañon, Ortega e Gasset, Jorge Luiz Borges, Roosevelt, Eisenhower, Picasso, Georges De Chirico, Juscelino Kubitschek, Villa Lobos, Octavio Paz, Capistrano de Abreu, Ruy Barbosa, Oliveira Lima, Manoel Bandeira, Hemingway, Josué de Castro, Ungaretti, Greta Garbo, Jorge de Lima, Frida Khalo, Diego Rivera, David Alfaros Siqueira, Rubem Braga, Ramos Olegario Mariano, Mario Quintana, Sartre, Osvaldo Aranha, Martinho de Haro, Ary Barroso, Mario Reis, Francisco Alves, Cândido Portinari, Roberto Campos, Josué Montello, Oscar Niemeyer e muitos outros também pertencentes à minha galáxia pessoal de amigos diletos, conhecidos de vista ou de nome, dos quais sou contemporâneo.



Curriculum
Nome: Licurgo Ramos da Costa.
Lugar e data de nascimento: Lages ­ SC, 4 de outubro de 1904.
Filiação: Octacílio Vieira da Costa e Adélia Ramos da Costa.
Estudos primários: Grupo Escolar Vidal Ramos e Colégio Diocesano ­ Lages.
Estudos secundários: Ginásio Catarinense (Fpolis) e Colégio Pedro II (Rio de Janeiro).
Estudos universitários: Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Curso de Bioquímica e Farmácia, 1924; Faculdade "Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1931; Instituto Internazionale de Economia ­ Roma, 1952.
Atividades jornalísticas: Entrou para a redação de "A Pátria", no Rio de Janeiro, no dia 10 de novembro de 1923, como redator e até 1945 foi, sucessivamente, redator dos seguintes jornais do Rio de Janeiro: "O Jornal", "Diário da Noite", "O Radical", ­ diretor-secretário; "A Noite", "A Hora", fundador e diretor-secretário "A Tarde"; "A Nação", redator-chefe; "A Manhã" e "Gazeta de Notícias". Em São Paulo foi redator de "A Gazeta". Fundador e diretor de "Publicidade", no Rio de Janeiro, a primeira revista de Propaganda e Publicidade da América Latina. Diretor da "Revista Brasileira" do Rio de Janeiro. Fundador e diretor, durante quatro anos da "Agência Nacional"; colaborador, durante vários anos das revistas "Para Todos" e "Ilustração Brasileira", do Rio de Janeiro. Colaborador do diário "Excelsior" do México; do "Heraldo Tribune", de Nova York; do vespertino "Madrid", da capital espanhola; da Revista "Política", editada trimensalmente pelo Instituto de Cultura Hispânica de Madrid. Em Florianópolis tem colaborado nos jornais "O Estado" e "Diário Catarinense".

Atividades como funcionário público
Depois de exercer vários cargos de menor relevo em repartições públicas federais, no Rio de Janeiro ­ auxiliar dos Correios e Telégrafos, escriturário do Ministério da Viação e Obras Públicas, redator de publicidade do Instituto de A. e Pensões dos Comerciários, secretário do Museu Imperial, de Petrópolis, etc. ­, foi sucessivamente, a partir de março de 1936 até 1973:
  • Secretário do diretor-geral do Departamento de Imprensa e Propaganda, no Rio de Janeiro;
  • Diretor de administração do referido departamento;
  • Delegado do mesmo departamento à Conferência da Consolidação da Paz, em Buenos Aires, em 1936;
  • Delegado do governo brasileiro ao 2º Congresso Interamericano do Municípios, em Santiago do Chile, 1942;
  • Membro da Delegação de Jornalistas que visitou a Itália, em 1938, a convite do seu governo;
  • Adido Comercial junto à Embaixada do Brasil no México;
  • Chefe do escritório comercial do governo brasileiro no México;
  • Conselheiro comercial à Embaixada do Brasil no México;
  • Adido Comercial à Embaixada do Brasil em Lisboa e chefe do escritório comercial do governo brasileiro em Portugal;
  • Chefe do escritório comercial do Brasil em Milão;
  • Adido Comercial à Embaixada do Brasil em Roma;
  • Adido Comercial à Embaixada do Brasil em Washington;
  • Chefe do escritório comercial do governo brasileiro em Nova York;
  • Ministro de Assuntos Econômicos do Brasil junto à Embaixada em Madrid;
  • Ministro de Assuntos Comerciais junto à Embaixada do Brasil em Buenos Aires;
  • Ministro de Assuntos Comerciais junto à Embaixada do Brasil em Montevidéu;
  • Delegado do governo brasileiro na Comissão que negociou o Convênio Comercial com a Espanha;
  • Chefe da delegação do Brasil que negociou o acordo aéreo com a Espanha;
  • Chefe da delegação brasileira que negociou o acordo relativo à dívida do Uruguai para com o Brasil;
  • Chefe da delegação do Brasil à 23ª Feira Internacional de Barcelona;
  • Delegado do Ministério das Relações Exteriores do Brasil ao Congresso de Turismo dos Países de Região Sul da América Latina, realizado em Montevidéu;
  • Chefe da Delegação do Brasil na Comissão Mista Brasileiro-uruguaia de Intercâmbio Comercial;
  • Delegado do governo brasileiro na Comissão Mista Brasileiro-uruguaia para o Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim.
  • Aposentado como Ministro da 1ª Classe no quadro do Ministério das Relações Exteriores.
Outras atividades
  • Em 1934 fundou, com Mário Hora e vários outros jornalistas e escritores, o primeiro sindicato brasileiro: a "União dos Trabalhadores do Livro e do Jornal" ­ UTLJ ­ que teve enorme atuação nas atividades trabalhistas de então. Foi membro de suas diretorias e é possuidor da Carteira de Sócio nº 1, o que o coloca na situação de primeiro sindicalizado do Brasil. Em virtude de reforma da Lei Sindical a UTLJ se desmembrou em vários sindicatos, alguns anos depois de sua fundação, mas ficou na história do trabalhismo brasileiro como a primeira entidade sindical do País; 
  • Foi presidente da Associação Brasileira de Propaganda durante quatro anos;
  • É presidente honorário da Associação Paulista de Propaganda;
  • Sócio da Associação Brasileira de Imprensa;
  • Sócio do Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro;
  • Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Cultura, do Rio de Janeiro;
  • Sócio correspondente da Associacion de Prensa de España, com sede em Madrid;
  • Sócio efetivo do Pen Club Internacional;
  • Sócio do Instituto de Cultura Hispânica, com sede em Madrid;
  • Fundador do Comitê de Imprensa do Touring Club do Brasil;
  • Sócio efetivo do Sindicato dos Economistas do Estado da Guanabara;
  • Membro da Ordem dos Economistas do Brasil;
  • Sócio efetivo da União Brasileira de Escritores com sede no Rio de Janeiro;
  • Membro da Academia Catarinense de Letras (Cadeira 37);
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
Condecorações
  • Grã-Cruz da Ordem de São Lázaro de Jerusalém;
  • Comendador da Ordem de Isabel La Catolica, da Espanha;
  • Comendador da Ordem do Mérito, da Itália;
  • Oficial da Coroa Italiana;
  • Grande Oficial do Instituto de Cultura Hispânica;
  • Medalha do Mérito da Cidade de Madrid;
  • Colar da Imperatriz Dona Amélia, da Sociedade Portuguesa de Beneficência, com sede em Lisboa;
  • Medalha de S.S. o Papa Pio XII;
  • Medalha de Corrêa Pinto, de Lages, concedida, em 30 anos apenas a três pessoas.
Livros
  • Itália, Numa Visão Panorâmica ­ Edição do Anuário Brasileiro de Literatura ­ Rio de Janeiro ­ 1939.
  • Técnica de Propaganda Política ­ Edição Propaganda ­ Rio de Janeiro ­ 1939.
  • História e Evolução da Imprensa Brasileira ­ Em colaboração com Barros Vidal. Edição da Comissão dos Centenários de Portugal ­ Rio de Janeiro ­ 1940.
  • O Desenho na Publicidade ­ Edição Propaganda ­ Rio de Janeiro ­ 1940.
  • Cidadão do Mundo ­ Edição Livraria José Olympio ­ Rio de Janeiro ­ 1942.
  • Conferência Interamericana de Municípios ­ In Observador Econômico ­ Rio de Janeiro ­ 1942.
  • A Rua das Vaidades ­ Tradução ­ Edição Livraria José Olympio ­ Rio de Janeiro ­ 1943.
  • Vargas Ciudadano Del Mundo ­ Edição Libreria Cosmos ­ México ­ 1945.
  • Panorama Del Brasile ­ Edição Nardini ­ Roma ­ 1950.
  • O Brasil e o Mercado Italiano ­ Edição Livraria São José ­ Rio de Janeiro ­ 1951.
  • O Café Brasileiro no Mercado Espanhol ­ Estates Editorial ­ Madrid ­ 1957.
  • "La Doctrina Kubitschek en Marcha", em colaboração com Pedro Gomes Aparício ­ Editorial Casado ­ Madrid ­ 1959.
  • Uma Nova Política para as Américas ­ Edição Livraria Martins ­ São Paulo­ 1960.
  • O Continente das Lagens ­ Edição Fundação Catarinense de Cultura ­ 4 volumes ­ Florianópolis ­ 1982.
  • Otacílio Costa, uma Vida a Serviço da Comunidade ­ Edição do Autor ­ Lages ­ 1983.
  • Um Cambalacho Político ­ Editora Lunardelli ­ Florianópolis ­ 1987.
  • As Mordomias da Pobreza ­ Editora Lunardelli ­ Florianópolis ­ 1987.
  • "Ensaio sobre a Vida de Lindolfo Collor" ­ Editora Lunardelli ­ Florianópolis ­ 1990

 Original em: http://www1.an.com.br/grande/licurgo/index.htm

3 comentários:

  1. Não conhecia a figura do inhô Licurgo, então devo agradecê-lo, nobre Garcia, por nos apresentar tão interessante personagem da história político-cultural de nosso Brasil Varonil. Devo confessar que o vilarejo de Lagens ganha alguns pontos comigo, por ser o berço de tão iluminada figura.

    Obs: é importante ressaltar que o jornalista Apolinário Ternes provém da cidade de JOINVILLE, a maior e mais rica do estado. Acho que vossa excelência devia ter mencionado isto.

    No mais, espero avidamente por outros textos semelhantes.

    Mui cordialmente,

    Vinícius Gomes

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  2. Mas se você não ia aproveitar pra enaltecer xôinville, heim? Tira os bodes do estacionamento, depois falamos sobre a importância dela, diante da nobre princesa da serra.

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  3. Sensacional! Um pesar esta grande persona ser pouco reconhecida! Alguns apontam que se o mesmo não fosse serrano teria tido maior notoriedade em nosso estado!

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